sexta-feira, 27 de junho de 2014

A Arte de Andar (II)

(…), não são apenas essas entidades reconhecidas pelas civilizações ocidentais como “vivas”, não são apenas os outros animais e plantas que falam, como espíritos, aos sentidos de uma cultura oral, mas são também o rio serpenteante onde esses animais bebem, as torrenciais chuvas da monção e a pedra que encaixa perfeitamente na palma da mão. A montanha também tem os seus pensamentos.
David Abram (1996): A Magia do Sensível


Ao entendermos “religião” na sua acepção etimológica de ligação (do latim religāre: ligar a, unir a, atar) o que nos ocorre é o acto de andar como actividade privilegiada de (re)ligação à sacralidade da natureza ou à própria divindade. É nessa acepção, aliás, que o caminhar visto como uma espécie de “ioga ambulatório” dá sentido a essa curiosa expressão, tendo em conta também a etimologia da palavra “ioga” (do sânscrito योग: unir ou juntar, entre outros significados).
A sacralidade da natureza é algo de evidente para as culturas indígenas genuinamente orais, nas quais o próprio mundo dos sentidos continua a ser a morada dos deuses e dos poderes numinosos. Esta forma de vivência é tão actual hoje em dia entre as tribos de caçadores e recolectores quanto o seria há milénios atrás (sobretudo entre os povos nómadas anteriores à invenção da agricultura), independentemente da sua estranheza para a maior parte dos ditos “ocidentais” modernos ou pós-modernos. Não olvidemos, porém, as origens históricas do pedestrianismo que, apesar de se ter iniciado à sombra do Iluminismo, foi, na verdade, fortemente influenciado pelo pré-romantismo e sobretudo pelo romantismo. Esta corrente de pensamento, que rejeitava precisamente o positivismo da época, enveredou por caminhos exóticos de subjectividade assumida, nos quais se enaltecia o individualismo a par do pitoresco da natureza selvagem. Nesse contexto, não será de estranhar a opção dos “passeantes de domingo” pertencentes à Walden Pond Association (séc. XIX): eram assim designados por nunca irem à igreja aos domingos, preferindo, ao invés, caminhar nos bosques. Afinal, esses transcendentalistas de Concord, ao belo estilo de Emerson e de Thoreau, não faziam mais do que maravilhar-se perante a sacralidade da natureza. É nesse contexto também que se poderá enquadrar a afirmação de Aldous Huxley (1894-1963): «O meu pai [Leonard Huxley (1860-1933)] considerava uma caminhada nas montanhas como o equivalente a uma ida à igreja.»
O romantismo e o naturalismo de muitos filósofos, artistas e até cientistas, que expressaram “sensibilidade” perante a natureza, viria a emergir na ecologia e, posteriormente, na ética ambiental. Nesse contexto, salienta-se a influência marcante que tiveram John Muir (1838-1914), no âmbito da protecção da natureza1, e Aldo Leopold (1887-1948), no que concerne à ética da Terra2. Nas décadas de 1950-1960, destaca-se Jack Kerouac (1922-1969), um dos membros da geração beat, ao dar uma especial enfase à beat-itude: um estado que seria alcançável através da sintonia com todas as “criaturas vivas e sensíveis”, o que implicava uma atitude simultaneamente de entusiasmo e de assombro face à natureza.
O filósofo e alpinista norueguês Arne Naess (1912-2008) lançou, a partir da década de 1970, o movimento da ecologia profunda, que excede largamente as fronteiras da ética, mergulha na ontologia e traduz-se na prática como um modo de ser (como um ecologismo)3. Este movimento, que pretende atingir a auto-realização do self (do “eu-próprio”), propõe uma metafísica da ecologia profunda: afinal um retomar da ideia de que tudo está interligado e é interdependente. Será igualmente de realçar o facto de muitos dos adeptos da ecologia profunda serem montanhistas ou pedestrianistas: Arne Naess, Gary Snyder, George Sessions, Bill Devall, etc..
No que concerne ao acto de andar a pé e à sacralidade da natureza merece também um especial destaque a denominada “ecologia reverencial” de Satish Kumar (1936-): um ex-monge jaina que caminhou, nos anos 60, desde a sua Índia natal até à Grã-Bretanha, e desde então tem viajado pelo mundo a pé.
Pedro Cuiça
(Solstício de Verão 2014)
Um pequeno trecho  da palestra "A Arte de Andar - Ética e Estética Ambientais" que decorreu, a 21 de Junho, no Complexo Municipal dos Desportos de Almada




Notas
1. John Muir, muito influenciado por Thoreau, fundou o Sierra Club (1892) e foi defensor da criação de parques nacionais, sendo um preservacionista assumido em oposição ao conceito de conservação da natureza defendido, na época, por Gilford Pinchot (1865-1946). Estes inauguram a polémica entre não-antropocêntricos e antropocêntricos: preservação versus conservação.
2. Aldo Leopold foi o grande inspirador da ética ambiental: a ética da Terra explanada no livro A Sand County Almanac (1949) – Pensar como uma Montanha (2008) –, onde defendeu vários conceitos recuperados pelo ecocentrismo, designadamente o de amor e respeito pela Terra, a Terra como um organismo, a extensão dos direitos à natureza, a consciência ecológica e o retorno a uma visão holística da natureza. Leopold, continuado por John Baird Callicot, apresenta uma ética da Terra, convictamente ecocêntrica, cujo conceito marcante é o holismo: visão do ser humano e da natureza como partes integrantes e interdependentes de um todo.
3. Arne Naess ao publicar The shallow and the deep long-range ecology: A summary (1973) lançou os fundamentos da ecologia profunda (deep ecology). Na sua vertente teórica apresenta-se como uma ecosofia (entendida como filosofia de vida orientada para a harmonia ecológica) e uma ecotopia (enquanto recondução do ser humano ao seu ethos: o lar-planeta Terra). O pluralismo é aceite dentro do movimento como um dos elos estruturantes e a diversidade é entendida como fonte de riqueza, mas as visões dos diversos adeptos e a interpretação das suas premissas dificulta a tentativa de definição da ecologia profunda.

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