sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

As vias


«Claro que sou cristão; e outras coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, outro exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma brasileira.»
[Agostinho da Silva in BORGES: 2006: 192]

Cremos, todavia, que esta visão e experiência surge, em Agostinho, como o aprofundamento e o culminar da sua prática de uma determinada via, o catolicismo cristão, embora mediante uma leitura e sensibilidade paraclética que tende a extravasar das fronteiras ortodoxas, não sendo porventura possível se desde o início procurasse caminhar por todas as vias, o que seria uma forma de não seguir afinal por nenhuma. Sendo um ponto de chegada, torna-se difícil que esta experiência e visão seja um ponto de partida, o que implicaria a capacidade, certamente rara, embora não impossível, de desde o início alguém se colocar (ou se reconhecer) no cume da montanha – mediante uma experiência real e não meramente mental, que geralmente não produz senão a atitude diletante e indiferente da maioria dos intelectuais em relação à verdadeira espiritualidade –, livre disso que condiciona o haver caminho, ou seja, a subjectividade cindida da plenitude. Neste sentido, embora relativas à luz do seu fim último, e cada vez mais relativizáveis à medida que por elas se avança, as diversas vias, religiosas ou não, revelam-se afinal de uma importância fundamental para aqueles que as percorrem e enquanto as percorrem. Sobretudo a via a cada um mais adequada para chegar ao fim último, pois é ela, e não por outra, que melhor pode caminhar, e mais rapidamente – o que não quer dizer facilmente, mas antes o inverso, pois só as dificuldades obrigam à superação e transformação de si na qual consiste o avanço –, em direcção a ele. Com efeito, não tendo a capacidade de voar de imediato para o cume da montanha, ou seja, de se reconhecer desde sempre lá, nunca aí chegará aquele que desde o início queira percorrer todas as veredas que até ele conduzem. Não o vemos senão dando alguns passos numa, para logo voltar atrás, ensaiar caminho por outra e assim sucessivamente. Ou então abandonando uma após algum progresso nela para, sem regressar atrás, tentar mudar-se para outra, o que implica o risco de se extraviar no denso matagal que as separa, sem encontrar outra vereda ou sem saber se, mesmo encontrando-a, nela lhe será de algum proveito o progresso feito na anterior, pois diferentes são, em função das diferenças de cada indivíduo, quer as características e exigências de cada caminho, quer as qualidades que ao percorrer cada um deles, embora convergentes para um mesmo fim, se desenvolvem. Claro que existirão muitas e dignas excepções, mas o quadro mais provável para alguém que deste modo se comporte é o de desperdiçar o precioso e limitado tempo de uma vida humana a andar em círculos, ou de um lado para outro, subindo e descendo sem se afastar muito do sopé da montanha, a entrar e a sair das diferentes veredas, ou ainda perdido a meio da subida, sem saber por que vereda continuar ou, abandonada uma, sem conseguir encontrar outra ou nela se integrar, até que o cansaço, a frustração, o desalento, o tédio, a descrença, o desespero ou a morte o surpreendam e lhe retirem toda a possibilidade de chegar ao cume, realizando-se plenamente. Pelo contrário, aquele que firme e decididamente, após averiguar qual a vereda que melhor lhe corresponde, e reconhecendo a equivalência de todas as demais como as mais correspondentes a outros, por ela caminhe sem distracção nem hesitação, quanto mais por ela ascender mais vai verificar e sentir a aproximação e convergência de todas as demais, e de todos os outros caminhantes, para o mesmo destino: o cume da montanha em cujo limiar todos finalmente em júbilo se encontram, dialogam, comungam ou mesmo, um passo adiante, fundem, descobrindo que um só é o sentido de vias múltiplas. O que não implica que todas as vias num dado momento e lugar sócio-geográfico e sócio-cultural existentes ou disponíveis conduzam exactamente, e com a mesma rapidez e proveito, ao cume, tornando-se legítima e desejável a mudança para os caminhantes que constatem a limitação, para si e para as suas aspirações, de algumas delas, por exemplo por se deterem no que consideram cume, e não é senão um patamar da ascensão ou por não permitirem desenvolver todas as qualidades que a partir de um determinado estádio da subida se requerem. O que, todavia, nos parece que mais evidente e necessário se torna em níveis superiores do caminho e não tanto nos seus passos iniciais.
Se Agostinho predominantemente nos fala a partir desse cume onde todas as vias autênticas, mais exigentes e profundas convergem, ou do seu vivido vislumbre, o que supõe um estádio avançado no caminho por si percorrido, parece-nos fundamental enfatizar estas observações para obviar uma leitura da sua visão conducente ao que nos parece mais uma das tendências e equívocos fundamentais de uma certa e suposta “espiritualidade” contemporânea, conhecida como New Age (sem negar o que nela corresponde a uma autêntica busca de espiritualidade mais livre dos limites dogmáticos e confessionais em que tendem a enquistar-se as religiões tradicionais), em que muitas vezes não se vende senão todo o tipo de “cocktails” espirituais, inventados à medida da imaginação do criador e da curiosidade ou necessidade do consumidor, quimérica via que procura conciliar o que haja de mais agradável e excitante, para o ego que deseja sempre resultados rápidos, por meios fáceis e agradáveis, em todas as vias tradicionais. Vias essas, ao contrário, de eficácia comprovada por haverem sido o, ou nascido do, percurso de inúmeros homens que por elas foram até ao cume, verdadeiramente se realizaram e assim se converteram em guias, nelas, para os demais, mostrando-lhes o caminho e as suas exigências e precavendo-os dos riscos e desvios. Seguir uma via fabricada à medida das necessidades de gratificação e promoção do ego, e não em função da necessidade de o superar, sem outro mestre senão ele mesmo, não pode, naturalmente, mais do que levar ao seu reforço do aprisionamento nele do ser mais profundo.
[BORGES: 2006: 192-194]








Referência bibliográfica
BORGES, Paulo. Tempo de Ser Deus – A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006, pp. 208. ISBN 978-972-780-177-0

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