domingo, 1 de janeiro de 2017

Nigredo

«– Gosta de jardinagem? Eis um belo começo, a alquimia é parecida com a jardinagem.
– Gosta de pesca? A alquimia tem qualquer coisa de comum com a pesca.
Trabalho de mulher e brincadeira de criança.»
Louis PAUWELS & Jacques BERGIER (2008: 105-106)

O Nigredo – a confusão dos elementos que surge no fim da liquefacção – é também o 1º meio demonstrativo, a Cabeça do Corvo, que marca o princípio da primeira negridão, a corrupção ou putrefacção (que dispõe para a geração).
Corresponde, ainda à primeira digestão (que é feita com CALOR BRANCO) – o congresso do macho e da fêmea, a mistura das matérias seminais, a dissolução do corpo e a resolução dos elementos em Água homogénea (o Caos tenebroso, o Tenebroso abismo).
José Manuel ANES (2010: 99)

Lima de Freitas © O Farol de Saturno (Acrílico sobre tela,1986)

Esta viagem começa a «Ocidente», pois esta palavra designa, em linguagem alquímica, a nigredo ou «a obra ao negro», que é a primeira fase do trabalho de transmutação: Ocidente, explica-nos Dom Pernéty, é o nome que «alguns químicos deram à matéria da obra em putrefacção. É a dissolução do sol hermético, chamamos-lhe ocidente porque este sol perde então o brilho, como o sol celeste nos priva da sua luz quando se deita». A «putrefacção» e a «dissolução» do «sol hermético» ocorrem assim nas águas negras do mundo de baixo, mas esta água amarga e salgada, este «Mar tenebroso» que se trata de atravessar é também o homem ele mesmo, no seu vazio abissal, sucessivamente purgatório e inferno, obscuro e inconsciente, profundidade temível onde sente chamaram-no as vozes indistintas do passado e dos seus «outros» larvares, engolidos, não manifestados ou não absolvidos, familiares e estranhos, como Jonas os entendeu no ventre da Baleia.
A barca enfim (como a baleia de Jonas era o seu inconsciente, como o «Mar tenebroso» era a sua substância abissal) revela-se ser ainda o homem ele próprio, desta vez enquanto corpo; corpo feito de água deste mesmo mar salgado, sal deste sal, cristalizado durante alguns instantes à superfície da noite líquida, como a imagem da face de Deus, antes de se dissolver: corpo-nau, navio e vaso, matéria maternal, que alimenta, feminina, que contém, abrigando-a e sustendo-a, a língua de fogo coagulada por cima do solve universal, como a arca susteve Noé e todas as sementes da vida futura acima do dilúvio.
E nós vemos presentemente esta chama, esta presença divina ou este «Espírito Santo» flutuando sobre as vagas do oceano cósmico e deslizando em direcção à aurora consurgens; do mesmo modo, aquele que repete iniciaticamente o percurso solar sobre as vagas diluvianas verá despontar a «Oriente» as claridades puras do albedo. «Quando a cor branca se manifesta após o negrume da matéria putrefacta, diz o dicionário de Dom Pernéty, chama-se-lhe Oriente porque parece então que o Sol hermético sai das trevas da noite». A viagem iniciática começa, assim, «entre uma luz inicial e uma luz reencontrada, entre o Oriente primeiro, paraíso sempre perdido, e o Oriente segundo, definitiva cidade do sol», sendo o percurso nocturno a prova, a errância, a demanda, a História, pois segundo a profunda observação de Hegel, pertinentemente retomada por Jean-François Marquer, toda a história é por si mesma «ocidental».
Na riqueza extraordinária dos mitos e dos símbolos do mar e da navegação, encontrámos portanto, um fio condutor de natureza iniciática que orienta a nossa pesquisa e desde já confere um sentido a bastantes lendas e aspectos tradicionais aparentemente desprovidos de conexão. Resumamos então: a morte do homem é assimilável à «morte» do sol; o seu lugar é o «Ocidente», ela pode ser concebida como uma dissolução ou uma partida no oceano primordial; o mundo inferior ou infernal apresenta-se como um percurso a vencer, uma navegação perigosa, uma peregrinação da alma, e completar este itinerário equivale, em consequência, a uma prova iniciática, a uma descida aos infernos e a uma purificação através de provas sucessivas; a aurora anuncia a «ressurreição» do deus sol e prefigura a fusão da alma do defunto na luz divina ou, no plano «técnico» do hermetismo, a obtenção da «pedra branca» que precede a entrada em Heliópolis, a cidade solar.
Lima de FREITAS (2006: 189-192)

Pedro Cuiça © Quinta da Regaleira (Sintra, 2016)


Referências bibliográficas
ANES, José Manuel. A Alquimia – Os alquimistas contemporâneos e as Novas Espiritualidades. Lisboa: Ésquilo, 2010, pp. 320. ISBN 978-989-8092-71-7
FREITAS, Lima de. Porto do Graal – A riqueza ocultada da tradição mítico-espiritual portuguesa. Lisboa: Ésquilo, 2006, pp. 352. ISBN 972-8605-72-2
PAUWELS, Louis & BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos. Lisboa: Bertrand Editora, 2008 pp. 512. ISBN 978-972-25-1753-9

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