sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Antrópos

Lamentemos aqueles que nunca puderam isolar-se e não sabem viajar senão em grupo. São pessoas que afugentam na sua frente, para onde quer que se dirijam, a soledade e o recolhimento.
Norbert Casteret
(Dez Anos Debaixo da Terra, 1945: 7)


«Somente se caminharmos sozinhos em silêncio, sem bagagem, poderemos verdadeiramente penetrar no coração da natureza selvagem. Qualquer outro tipo de viagens não passa de poeira e hotéis e bagagem e tagarelice.»
[John Muir in DEVALL & SESSIONS, 2004: 139]

© na Net (?)

«O Lazer ao ar livre tornou-se um problema conceptualmente identificado nos tempos de Roosevelt [1858-1919], quando as ferrovias que tinham expulsado o campo da cidade começaram a transportar citadinos, en masse, para o campo. Começou a notar-se que quanto maior o êxodo, mais pequena era a ração per capita de paz, solidão, vida selvagem e beleza paisagística, e mais longíqua a migração capaz de as alcançar.
O automóvel espalhou estes inconvenientes, outrora moderados e localizados, até aos limites extremos das boas estradas1 – tornando escasso no interior do país algo outrora abundante em qualquer terreola. Mas esse algo tem não obstante que ser encontrado. Como os iões emitidos do sol, os que partem aos fins de semana irradiam de todas as cidades, gerando calor e fricção à sua passagem. A indústria turística fornece cama e mesa para atrair mais iões, mais depressa, mais longe. Cartazes publicitários fixados sobre as rochas e leito dos rios comunicam a toda a gente a localização de novos refúgios, paisagens, campos de caça e lagos de pesca, logo adiante daqueles que acabaram de ser devastados. Departamentos da administração constroem estradas em novas regiões afastadas, e depois compram mais terrenos afastados para absorver o êxodo acelerado pelas estradas. A indústria de acessórios fornece almofadas para proteger os clientes da natureza em bruto; a arte de viver na floresta torna-se a arte de usar essa quinquilharia. E agora, para coroar a pirâmide de banalidades, a caravana automóvel. Para quem procura nos bosques e montanhas apenas aquilo que poderia também obter viajando ou jogando golfe, a situação presente é tolerável. Mas para quem procura algo mais, o recreio de ar livre tornou-se um processo autodestrutivo de procurar sem nunca verdadeiramente encontrar, uma enorme frustração da sociedade mecanizada2.»
[LEOPOLD, 2008: 159]

© na Net (?)

«(…) nós vivemos, como disse [Henry David] Thoreau, numa «espécie de vida limítrofe» entre o primeiro mundo da natureza e o segundo mundo da sociedade tecnocrática-industrial. E, prossegue Thoreau, «nunca se ganha coisa alguma mas perde-se sempre alguma coisa». À medida que alguns seres humanos aumentam enormemente a sua capacidade de análise e de domínio sobre as paisagens, com vastos projectos de construção, sistemas de mísseis, etc., eles parecem perder alguma da sua capacidade de compreensão, de densidade de pensamento e de dança meditativa perante a maravilha do cosmos.»
[DEVALL & SESSIONS, 2004: 139]

Multidão no Everest © na Net (?)

NOTAS
1. Tenhamos em conta que a primeira edição desta obra icónica de Aldo Leopold (1887-1948) foi publicada, sob o título A Sand County Almanac, em 1949. Já nessa altura era evidente que a protecção devida à inacessibilidade do terreno deixava de funcionar face ao grande incremento das actividades de ar livre, especialmente quando a construção de (novas) vias de comunicação, por si só, facilitava o acesso (CUIÇA, 2012).
2. Imagine-se o que Thoreau pensaria da realidade actual dos transportes motorizados, públicos e privados, mormente dos aviões a jacto – essas lo(u)co-motivas voadoras dos tempos (pós)modernos, que facilitaram e banalizaram o transporte de turistas até aos mais exóticos destinos, e da hegemonia dos combustíveis fósseis (não só carvão mas também petróleo e outros "primores"!)  que “democratizaram” e levaram a poluição até aos mais remotos pontos da Terra.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CASTERET, Norbert. Dez Anos Debaixo da Terra – Memórias de um explorador de cavernas. Porto: Livraria Tavares Martins, 1945, pp. 256.
CUIÇA, Pedro. Montanhismo e Ambiente – A conservação da natureza em Montanha. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal, revista Campismo & Montanhismo, Série I, Jul.-Set. 2012, p. 24-25.
DEVALL, Bill & SESSIONS, George. Ecologia Profunda – Dar prioridade à natureza na nossa vida. Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé, 2004, pp. 292. ISBN 972-8870-01-9
LEOPOLD, Aldo. Pensar Como Uma Montanha. Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé, 2008, pp. 220. ISBN 978-972-8870-10-2

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